segunda-feira, dezembro 26, 2005

A prosa contemporânea na Guiné-Bissau



Conquistada a independência, as novas burguesias e as novas elites estatais africanas conseguiram estabelecer um sistema de conservação do poder que passou a funcionar a todo preço, baseado na repressão, no partido único e no governo do "homem forte". O resultado foi que em muitos países se instalou uma oligarquia corrompida, preocupada com o seu próprio enriquecimento e com as suas próprias vantagens, enquanto que o povo continuou nas mesmas dificuldades, lutando por uma sobrevivência material e moral, cada vez mais miserável. As esperanças existentes outrora, quando o fim da colonização, cada vez mais próximo e concreto, animava aos que lutavam pela libertação, acenando para um mundo de igualdade e justiça, foram substituídas pela frustração, pelo derrotismo e pelo acomodamento(1). Tal estado de espírito é comum a toda a África negra.

Na galeria de personagens de Abdulai Sila destaca-se, no seu terceiro e mais recente romance, intitulado Mistida, um desfile alucinante de figuras absurdas: Amambarka, Nham-Nham, Yem-Yem. Sobressai-se o aberrante e assustador Amambarka, parricida, ganancioso, viciado e execrável, cujos traços repugnantes foram hiperbolizados pelo romancista até a exaustão (cf. p. 87-96). Esse nome foi tirado da língua mandinga, sendo um lexema que tem conotação de coisa ruim, do que não presta. Nham-Nham, onomatopéia indicadora do ato de comer, é um ser repugnante e alienado, cego pelo poder, entorpecido pela bajulação, idiotizado mas perigoso, completamente dependente do diabólico Amambarka. Yem-Yem, o "carrasco", é outra figura intangível, enredado na busca da palavra esquecida (ibid., p. 161), aterrorizador das pessoas (ibid., p. 171).
Esses seres chocantes, porém, foram inspirados em pessoas reais, deformadas e caricaturadas, para os menos avisados impossíveis de serem reconhecidas mas nem por isso menos verdadeiras nem menos ameaçadoras, pois faz parte da arte de convencer lançar mão de recursos do horror. Os protagonistas de Mistida, aparentemente absurdas personagens, são verdadeiros atores da sociedade atual - e não só da Guiné-Bissau - e estão, cada um a seu modo, em busca de "estratégias individuais postas em jogo à procura de saídas e novos sentidos que permitam sobreviver à desestruturação", como disse Teresa Montenegro no prefácio. Mais uma vez, apesar dos horrores que enchem este seu terceiro livro, Sila lança sua mensagem de esperança, de teimosa esperança: existe uma perspectiva para seu sofrido país. Apesar dos montões de lixo, material ou humano, há as Mama Sabel, as Mbubi, as Ndani e as Djiba Mané, personagens femininas fortes e até certo ponto contraditórias, sumamente positivas, com as quais o autor se identifica e que personificam a comunidade subalterna, sem poder, mas vigilante e altiva.
Em Mistida, Abdulai Sila escolheu as vias oblíquas do absurdo e do paroxismo para pôr a descoberto o indizível, aquilo que, embora não tivesse sido esquecido, estava obliterado e silenciado. Esse caminho ziguezagueante tornou-lhe possível recordar um passado recente cheio de contradições e afrontar um presente já agonizante que se queria (ou ainda quer?) eternizar no futuro. Quem está seguindo os acontecimentos atuais na Guiné-Bissau pode, mais do que nunca, captar os lances terrivelmente proféticos de Mistida.
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(1). Sobre o assunto, cf. Guy Ossito Midiohouan, L'idéologie dans la littérature négro-africaine d'expression française, Paris: L'Harmattan, 1986:208 e ss.
Sila, Abdulai, Eterna paixão, Bissau: KU SI MON Editora, 1994, Sila, Abdulai, A última tragédia, Bissau: KU SI MON Editora, 1995

Sila, Abdulai, Mistida, Bissau: KU SI MON Editora, 1997
Augel, Moema Parente, A nova literatura da Guiné-Bissau Bissau: Instituto Nacional de Estudos e Pesquisa (INEP), 1998, Série literária, Colecção Kebur, nº 8
Cuti, Batuque de Tocaia, São Paulo: Edição do Autor, 1982
Cuti, Flash Crioulo sobre o sangue e o sonho, Belo Horizonte: Mazza Edições, 1987

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