sexta-feira, dezembro 23, 2005

Gina, Minha Amiga (Conto)



Por: Ansumane Sanhá



Eram duas horas da tarde, quando, muito suado, cheguei ao serviço. Nesse dia, fazia um calor mortífero, provocado por um sol abrasador. O céu estava limpo. Estávamos em pleno verão.

À entrada do Centro, encontrei duas miudinhas, aparentando entre os 9 e os 11 anos, descalças e rudemente trajadas, descansando, depois de terem deambuladas pela zona baixa da cidade, vendendo mangas, nos ministérios, empresas e repartições. À pergunta, como é que se chamavam, responderam-me, trocando o "G" e o "J" por "Z": - Eu chamo-me Zina (localmente conhecida por Ndjia) e esta, apontando para a outra miudinha ao seu lado, sua irmã, Zulia (Onor).

Tendo em conta as suas tenras idades e satisfazendo a minha curiosidade, indaguei-lhes o seguinte:

- Como conseguem tirar essa avultada quantia de mangas ?

- Eu subo. Sei subir. Faço-o normalmente quando não há muita temperatura e vento. No nosso quintal e também na nossa quinta temos muitas mangueiras, -respodeu Gina, cabisbaixa.

Gina e a sua irmã, Júlia, vêm a Bissau todos os dias, vendendo mangas. Através de uma conversa velada que com elas tive, depreendi que naquelas cabaças de mangas estavam depositadas todas as esperanças da numerosa família composta de um homem (marido), cinco esposas e dezassete filhos !

- O que é que fazem com o dinheiro que auferem da venda das mangas - perguntei eu, interessado.

- Compramos arroz e mafé. O resto usamos na aquisição de roupas e sapatos.


A vida tão dura que essas imaculadas crianças levavam, contrastava-se com a idade e o físico delas. Mas, que fazer? Se não vendiam mangas, não comiam. Que pena. Elas nem tinham oportunidade de frequentar escola.

- Vocês andam na escola ? inqueri eu.

- Não, respondeu Gina, premptoriamente. Nem tempo temos para nos coçar, quanto mais para ir à escola.


Essas palavras da minha amiga emocionaram-me. De repente, a pena e a compaixão apuderam-se de mim.
Depois de uma pequena pausa, a Gina pediu-me agua para beber. Dei-lhes agua fresca, e travou-se entre nós o seguinte dialogo:
Essa água queima a gente nos dentes, disse ela, apôs tentar beber agua fresca.

É uma questão de costume. Se te habituares, tudo será normal, disse eu.

- Há quanto tempo tu trabalhas aqui ? perguntou-me ela

- Há sensivelmente ano e meio, respondi eu.

- Que tipo de trabalho fazem aqui, foi a vez da Júlia a perguntar-me.

- Aqui é o Centro Cultural. O seu objectivo e a difusão da cultura brasileira e promoção de actividades literárias, expliquei-lhes.

Apôs ter respondido a uma chamada telefónica vinda de uma das dependências da Embaixada, veio-me à mente a seguinte pergunta:

- Com quem moram ?

- Com o nosso velho pai, de 90 anos.
Outrora, segundo nos informou mamã, ele tinha muito dinheiro. E como a riqueza de um velho naquele período avaliava-se pelo número de esposas e cabeças de gado que possuía, ele teve que se casar com cinco esposas. Infelizmente, agora, sem forças para nada e com o dinheiro tudo esbanjado na ostentação e fama, somos nós, os filhos, que pagam pela tamanha imprudência do velho, explicou-me a Gina, sem se poder conter as teimosas lagrimas que lhe caíam do canto dos olhos.


A minha compaixão foi tão imensa, que chorava copiosamente como chuvas de verão, por ela ter descorrido sobre todos esses detalhes.
Já à tardinha, quando o sol ia-se por, a minha amiga despediu-se de mim, oferecendo-me duas belas mangas. Dei-lhes 20 contos para pagar o toca-toca e comprar o plak fingido.

Apertando-me as mãos e com cabaças na cabeça, as duas irmãs lutadoras se puseram ao caminho de regresso à casa, prometendo voltar ao Centro noutro dia.

No dia seguinte, já mais cedo do que na véspera, cheguei ao trabalho. Esperei, ansiosamente, pela chegada da minha amiga e sua irmã.

Passaram-se horas, dias e semanas elas ainda não tinham chegado. Impaciente, fui à zona baixa da cidade, perguntando por eles.

Muito lamentavelmente, soube, através de colegas de "serviço" da Gina, que ela tinha caído doente já havia três semanas.
Apesar de ter sido já o cair da noite, nesse mesmo dia, fui à Farmácia Rama comprar medicamentos anti-paludico, enfiando-os num saco plástico, apanhei o ultimo Toca-Toca para Djoorl.

Chegado à tabanca do pai da Gina, perguntei à primeira pessoa com a qual me cruzei onde se situava a casa do velho Ndjomboco. O desconhecido, apontou, entre grandes arbustos, com o dedo indicador, uma velha e pequena palhota onde se apinhavam os vinte e três membros da numerosa família do velho.
Com cabeça entre as pernas e extremamente abatida, quase não conseguia reconhecer a outrora formosa, elegante e esbelta Gina na qual agora só restava o esqueleto do corpo.

Os cabelos começavam a enrugar-se e quase não se aguentava de pé, de tanto violento que foi o paludismo.
Quando nos vimos, molhamo-nos de lagrimas.

- O que te aconteceu para ficares tão arrasada e acabada em apenas três semanas, perguntei-lhe.

- Tive uma doença terrível, quase mortífera.
O papa foi ao Djambacus e este lhe disse que eu me tinha encontrado com o “mau vento”, respondeu ela, com palavras entercortadas.
-Que “mau vento”!!? Isso é uma história. Tu deves ter contraído o paludismo.
Eu proponho que viajemos até Bissau, para consulta médica, propus eu, sem esperança.

- O papa vai recusar, disse ela, totalmente desanimada.

Meus senhores, não podem imaginar a "Guerra" que travei com o velho Ndjomboco para convencê-lo a deixar-me viajar com Gina para Bissau.Apôs ter sido submetido aos necessários exames médicos na Clinica do Dr. Brandão, os resultados confirmaram que a pobre Ndjia, realmente, padecia de paludismo agudo, que se encontrava numa fase muito avançada e irremediável.

Nos meus braços, já no estado de coma, a Gina confidenciou-me:
- Meu querido amigo, obrigado por tudo o que me tens feito e desculpa pelas maçadas e incómodos que te tenho causado.
Aconselho-te a lutar, sem tréguas, para a irradicação total de todos os hábitos ancestrais nefastos à sociedade, pois, eu sou uma das vitimas dessas praticas.

Dito isso, a minha amiga fechou, sem nunca mais abrir os olhos e definitivamente descansou a árdua vida que levava na face da terra.

Ela foi apenas um exemplo de vitimas de adversidades e contrariedades da vida e do obscurantismo no qual ainda vive uma boa parte da nossa população.

Mas, mais do que isso, a Ndjia espelha, de forma ilucidativa, o perfil de uma lutadora incansável para a sobrevivência e manutenção da família.

FIM

Ansumane Sanha
Reeditado em Moscovo, 2003

Texto original escrito em 1991
In”Djumbai di no Terra”

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