Filinto de Barros: acerto de contas com o passado?
por: Moema Perente Augel
Filinto de Barros afirma que seu romance Kikia matcho não passa de um pequeno exercício de ficção. Nem história, nem sociologia, nem etnologia, nem política, tão somente uma abordagem que se pretende dinâmica do processo de síntese sócio-cultural de um Povo (cf. Barros, 1998, p. 7).
O título é a designação crioula para o mocho e a essa ave são atribuídas na Guiné-Bissau propriedades diversas: pode ser mensageira do bem e do mal, mas sobretudo é ligada a maus presságios e à má sorte. Através do kikia e da sua simbologia, Filinto de Barros introduz o leitor e a leitora no mundo mágico e mítico africano ao mesmo tempo em que, pela interação das personagens, estabelece a ponte entre o passado e o presente.
Em seu conjunto, o livro Kikia matcho encerra uma soma de informações sobre o processo da independência e os primeiros passos de um Estado em formação. Essas informações são a razão de ser da obra, a estória constituindo apenas um pretexto. Ao mesmo tempo em que informa, ativo participante que foi da gestação e do momento desse parto, Filinto de Barros mobiliza os diferentes níveis da narrativa, direcionando-os tanto para o exercício dialético da compreensão do processo como para o julgamento dos seus resultados. Informação a nível do passado e interpretação a nível do presente, o romance deixa entrever sombrias perspectivas para o futuro. É sobretudo uma constatação dos acontecimentos contemporâneos com um olhar para o já acontecido, com o fito de esclarecer, explicar a situação atual do país.
O abandono sofrido pelos antigos combatentes da liberdade da pátria, cujo soldo não basta para um saco de arroz, é mostrado bem cruamente em Kikia matcho e seria um exemplo do desmascaramento intencionado pelo romancista Filinto de Barros.
Uma lembrança presente no coração do povo, que não faz parte da herança hegemônica, foi ainda evocada por Filinto de Barros que pôs a descoberto o fato do combatente morto ter perpetrado atos menos nobres, vergonhosos mesmos, não coadunando com a aura de heroismo que sempre envolve os "combatentes da liberdade da pátria". O autor ousou assim confessar o lado podre da gloriosa luta da libertação nacional, o abuso nunca mostrado às claras da utilização indevida das armas, evidenciando a perversão da "cultura da guerra", presente não só no campo inimigo. O processo de revirar ou reverter certas ambigüidades morais e factuais, cristalizadas em poderosos mitos patrióticos, faz parte da construção social da realidade, para usar a expressão divulgada a partir de Berger e Luckmann na Sociologia4. Ela é desmontada aqui e confrontada com uma outra visão, oposta e desafiadora.
Somente alguns poucos meses após a publicação desse romance, a 7 de junho de 1998, como já disse, eclodiu no país uma revolta no seio dos grupos dirigentes, entre representantes dos heróis da libertação transformando-se em guerra aberta e dolorosa que, depois de onze meses de sempre renovados conflitos armados, encontrou uma solução, que esperemos seja duradoura, a 7 de maio deste ano de 1999. Os presságios do Kikia Matcho ou os horrores acumulados em Mistida parece se terem confirmado. O sangrento embate entre fracções do exército nacional e contra o povo que conta entre os mais pobres do mundo, relança o questionamento sobre a legitimidade do regime tido como revolucionário, há quase trinta anos no poder, e sobre seus dirigentes, em grande parte os mesmos desde a independência. O legendário e carismático PAIGC está onipresente no romance de Filinto de Barros. Os donos do poder estão caricaturados até a desfiguração no romance Mistida, de Abdulai Sila. A revolta militar encabeçada pelo chefe do Estado Maior do Exército, General Assumane Mané, contra o governo dirigido pelo Presidente João Bernardo ("Nino") Vieira é expressão da crescente insatisfação e da decepção aqui tantas vezes já exteriorizadas, da parte dos antigos combatentes pela liberdade da pátria, compartilhadas pela grande maioria da população.
Esses recentes acontecimentos na Guiné-Bissau estão contribuindo para que o discurso oficial hegemônico se esvazie e perca a sua aura, reiterando de forma dramática a triste atualidade da urgência de uma reinterpretação da História, reflexão essa encetada pelos romancistas pioneiros Abdulai Sila e Filinto de Barros.
Considerações finais
Todos os escritores aqui referidos têm em comum uma tarefa de recuperação da africanidade e da dignidade perdidas, de procura e de afirmação da identidade nacional: tanto os afrobrasileiros como os guineenses, cada grupo a seu modo, cada autor com seu estilo próprio, com sua voz única e específica. Trata-se de uma literatura exortativa, sim, literatura engajada, literatura social, no seu sentido mais amplo, mas literatura exercício estético de beleza e busca do eu e do nós, mais profundo e mais verdadeiro, que têm a ver com raízes, umbigo, magma; literatura incitamento a um mergulho dentro de um passado doloroso e de difíceis lembranças, incitamento à empatia, ao sentir com, ao fazer com, incitamento à adesão, ao "concerto do djunta mon", de que fala o escritor guineense Tony Tcheka (1996:69).
O passado, tanto o passado bom como o passado infame, tem que continuar sendo relembrado como uma parte da identidade do africano assim como do afrobrasileiro. Embora consciente de que um número cada vez mais numeroso de afrodescendentes tenham hoje em dia alcançado um nível social e financeiro muito elevado e a franja dos bem sucedidos seja cada vez mais larga, no mesmo poema Cuti não deixa esquecer: Hoje é amanhã e ontem [...] / chicotes modernos não só relembram são chicotes/ que batem que rendem mais aos fundos senhoriais (Cuti, Resposta).
Cuti, que sempre, em todos os seus escritos, convida e incita à reflexão, admoesta: Quem disse [...] que é preciso calar a voz dos ancestrais? (ebd).
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Bibliografia
Alves, Miriam, Momentos de busca. Poemas, São Paulo: Edição daAutora, 1983
Assmann, Aleida und Jahn, Christof Hardmeier (Org.), Schrift und Gedächtnis. Beiträge zur Archeologie der literarischen Kommunikation, München: Wilhelm Fink Verlag, 1983
Assmann, Jahn, Die Katastrophe des Vergessens, in: Assmann, A.e D. Harth (Org.), Mnemosyne. Formen und Funktionen der kulturellen Erinnerung, Frankfurt/M: Fischer Verlag, 1993, p. 339-347
Augel, Moema Parente (Org. e Intr.), Schwarze Poesie. Poesia Negra. Afrobrasilianische
O Autor
Filinto de Barros nasceu em Bissau a 28 de Dezembro de 1942. Fez estudos secundários no Colégio Nuno Álvares, em Tomar, e estudos superiores na Faculdade de Ciências da Universidade de Coimbra e no Instituto Superior Técnico da Universidade Técnica de Lisboa. Depois da independência da Guiné-Bissau foi embaixador em Lisboa, entre 1978 e 1981. Na Guiné-Bissau exerceu vários cargos políticos, entre os quais ministro da Informação e Cultura (1981-1983), ministro dos Recursos Naturais e Indústria (1984-1992) e ministro das Finanças (1992-1994).
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