segunda-feira, março 21, 2011

para uma leitura de No Compasso do Primeiro Passo de André Mendes*



"na eminência

da minha ausência

uns traços no tempo

a minha sombra deixou


para os leigos do meu convento

um canto do meu pranto

neste manto

que não dura tanto"





Anjo nosso de guarda velai por nós!

génio nosso da arte dai-nos a inspiração

e a divindade que seja poesia, fazei de nós o vosso servo. Ámen!


Quando a poesia nos bate a porta, quando o anjo que guarda a nossa voz nos visita em plena solidão da noite nas horas mortas em pleno sonho para nos avisar da nossa missão apoliana, não há tempo a perder, não há alternativa senão levantar-se e erguer essa arma pronta para mais uma luta. E, com apenas um bloco de notas, o poeta percorre as artérias interiores da vida questionando sobre condição existencial do homem, as suas imperfeições, os vícios, o conforto do egoísmo, e caminha de mãos enlaçadas com o destino na esperança de uma madrugada de prosperidade de progresso para o povo. Em No Compasso Do Primeiro Passo há emaranhados de labirintos que dificultam a trajectória do poeta, soldado caminhante sem noção do espaço onde vai-se defrontando com bartabas e malilas/generais e estrelas. o poeta trespassa-se mansamente a cada passo, temendo a falsidade dos homens numa esquina e noutro beco canta a poesia enquanto labuta ao lado das crianças lamentando arroz ou forel/inhame ou manfafa para mitigar a fome.

Nasce-se poeta e cabe ao tempo engrenar o mecanismo da criação artística, afinando as vocações, educando a sensibilidade na conciliação da arte e do engenho. A auto-descoberta e tomada de consciência, o reconhecimento da missão do poeta, sobretudo de quem nasceu poeta neste recanto do mundo, neste continente berço, neste pequeno e emaranhado país - do ponto de vista étnico-linguístico e sociocultural - da costa ocidental da africana, Guiné.

E, vai-se resgatando a consciência identitária da nação guineense, um país onde tudo se adia e ninguém quer assumir a responsabilidade, ninguém quer ser o timoneiro da nau naufragada dos valores culturais neste oceano de "décadence" em que o país está submergindo lentamente e, subitamente, alguém messiânico levanta a voz, grita no lusco-fusco da sua juventa idade, no fundo do abismo e clama: “sou um poeta”, com amargura e inocência de uma infância privada do pão e... do ser, numa lagoa de incessantes revoltas sociais.

Custa tempo fazer poesia, custa suor escrever em versos. A poesia requer disciplina e dedicação, exercício intenso de percepção, de audição, de retenção e atenção a movimentações interiores e exteriores ao estímulo que nos rodeia. É preciso silêncio absoluto para a consagração, para a libertação do grito interior sufocante e a decoração do ambiente artístico captado pela nossa visão. E o poeta como observador do real objectivo remete a sua experiência do quotidiano para o laboratório a fim da sua purificação com retoques de tons e ritmos, musicalidades, condimentos que refinam o verbo, tornando-o mais líquido, saboreável, degustável antes de transformar-se em pó dissolúvel prestes para as núpcias do vento.


Eis a poesia que No Compasso Do Primeiro Passo nos apresenta, testemunhando a experiência do poeta, o legado que herdou da sua cultura literária que abrange temas inspirados no inconsciente colectivo guineense, as desilusões, os sonhos falhados, a esperança traída, a ambição e ganância dos fazedores da política, a pátria traída e aqueles que frustraram as promessas do combatente que sacrificou a vida, a juventude em prol da dignidade humana, sonhando com uma Guiné melhor onde houvesse pão para todos neste universo cheio de trigo.

O poeta vê um horizonte sem esperança no olhar das crianças cuja única certeza é o sofrimento das mães que se aguçam em pranto dos pássaros pressagiando rios de mágoas em que os débeis transatlantam sem canoas.

Os juramentos de Guiledje, Komo, Kassaka e Boé esfumaram-se e o poeta presenciou o grito dos pais lamuriando "trinta i sinku anus di duensa, matansa, ukesa, koitadesa/ladrondadi, muntrundadi/ranhaduras, murdiduras ku rikitiduras". E de novo escapa-lhe da garganta um grito de indignação: Onde estão a liberdade, a justiça e a democracia? E lamenta em tom de desespero: kasabi tindjidu/mufunesa sindjidu.

Passeando pelo No compasso Do Primeiro Passo, os números falam por si, são entidades autónomas e independentes nas delimitações dos territórios das palavras marcadas no interior dos versos. Cada data, cada dia, cada mês, cada ano, inscritos nos poemas que se lê no Compasso testemunha o papel do poeta como personagem não fictício mas real, participante na construção da identidade nacional guineense através da interiorização ou criação de uma memória historiográfica comum que nortearam o processo da emancipação e a afirmação da consciência político-cultural guineense que vai-se diluindo, absorvendo na livre interpretação da actualidade a partir da celebração, homenagem ou desapontamento, dependendo do ponto de vista dos opinadores, mas que de molde geral, a apartir leitura popular, são monumentos históricos que se tornaram mito e que, indissoluvelmente, vão-se propagando, solidificando, transformando-se em pedra basilar para a perpetuação dos signos definicionais.


Para além do simbolismo dos números (24, 14, 07…) edificados na construção do monumento da epopeia nacionalista guineense, os mitos dos heróis desconhecidos (BARTABAS) são evocados no poema bem como as figuras do universo sacro inscritos na crença tradicional; a sentimentalidade e a individualidade do sujeito são alguns dos lugares comuns convocados nesta obra, o que nos remete a catalogação dos traços românticos ou pós-românticos na medida em que os valores da nação são ressalvados e postos em relevo sem medida nem contenção das emoções e do sentimento de pertença a um espaço geográfico determinado:


"eu e a cantiga

o hino e a bandeira

minha fala e a liberdade

minha pátria e o carnaval"


O autor mostra-nos uma poética de indecisão, de incertezas, de revolta, do inconformismo, de auto-descoberta, de auto-consciência, de revelação e de denúncia da condição desumana do ser social a procura de melhor condição de vida.


No Compasso Do Primeiro Passo é uma obra recheada com doses de sentimento amoroso declaradas num lirismo transcendental na ligação vertical do homem, ser sensível, ao espírito inteligível, numa tentativa de idealização do amor-perfeito onde a figura do objecto amoroso é a mãe (quando sofre), é a mulher (quando nos aconchega), é a filha como poesia (quando floresce na aurora).
Pois, a arte é imitação no sentido lato do termo. Estar em harmonia com a natureza, obedecendo-lhe cegamente. A única via para a liberdade é a imitação dos modelos antigos e a sua reformulação, apropriando dos temas e estilos para a sua posterior exposição como forma de reivindicar a herança do legado de posturas estéticas dos precursores para depois, em sintonia com o processo de transformação, a voz surda, o eco revolucionário que representa o dealbar da vanguarda, afinar as ferramentas da construção para a engrenagem do sucesso.

Poetas! Ou continuamos a tradição ou rompemos. Ou continuamos meninos do mestre ou desafiamos o mestre e construímos a nossa própria escola, reformando os tradicionais ensinamentos, modernizando a instituição, proporcionando assim horizontes novos, sadios e naturais para novos discípulos que continuarão a escola até ao dia da sua inadiável ruptura. Não podemos adiar a palavra (Hélder Proença) e quem calará o poeta? É preciso o silêncio, silêncio total para o mundo escutar a voz que canta: "por isso quando o poeta fala o mundo ouve e a humanidade cala" - o silêncio universal! Pois não podemos alterar o percurso do mar... E nem se quer venhamos com interrogações retóricas! É imperativa a unidade. Pois, o tempo, como as ondas do mar, é fugaz, volátil e inconstante. Temos é que movimentá-lo, deixando traços para a posteridade!

Obrigado camarada Vasco Cabral e, a mãe do poeta também chorou no parto e a poesia nasceu!


Adão Quadé

Sacavém, 12/05/2010


*Prefácio do livro de André Mendes, No Compasso do Primeiro Passo, editado pela Euedito,2010, Lisboa

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